domingo, 12 de agosto de 2012

[Opinião] "Joana ou o Solstício de Inverno", de Carlos Alberto Poiares


Autor: Carlos Alberto Poiares
Editor: Fronteira do Caos Editores

ISBN:
 978-989-8070-70-8
páginas: 126




Sinopse:
   Joana, uma jovem licenciada em direito, entra em contacto com uma realidade para a qual nenhuma universidade foi capaz de a preparar: as subtilezas da vida na grande cidade, e de um mundo com regras e valores difusos.
   A sua vida desenvolve-se num ambiente complexo e contraditório, até ao desenlace final, momento em que o leitor irá ser surpreendido por um desfecho inesperado.
Um livro intenso e arrebatador, escrito com supremo deleite, capaz de nos inspirar e deixar a pensar acerca da verdadeira dimensão do ser humano, na sua diversidade, e múltiplas contradições.

Crítica/Opinião:

Por: Isabel Alexandra Almeida/Os Livros Nossos

   A obra literária “Joana ou o Solstício de Inverno”, da autoria de Carlos Alberto Poiares, Licenciado em Direito e Doutorado em Psicologia, com a Chancela da Fronteira do Caos Editores, consiste num romance que podemos classificar como contemporâneo.

   A personagem central – Joana – cujo percurso de vida acompanhamos desde jovem Licenciada em Direito, até à meia-idade, é rica e deveras complexa sob o ponto de vista psicológico e emocional. As restantes personagens vão surgindo na narrativa, em função das interacções que vão estabelecendo com a personagem central.

   Surge ao longo da obra uma vasta panóplia de personagens que podemos integrar em distintos espaços sociais, e que transportam consigo os seus pequenos ou grandes dramas.

    As sequências narrativas encontram-se intercaladas entre presente e passado, surgem analepses que nos transportam a episódios do passado de Joana que melhor nos permitem avaliar ou entender as suas atitudes e acões presentes, mas cabe referir que este encadeamento de presente e passado mostra-se realizado de forma coerente e bem pensada, sem nunca deixar que o leitor perca o fio condutor da narrativa, antes pelo contrário, ajuda o leitor a desvendar as tramas de se tecem as emoções de Joana. Proveniente de um meio rural, partiu aos 18 anos para Lisboa, para casa de uma tia mais velha – Gervásia – para estudar na capital (à semelhança de tantos outros jovens), sendo tendencialmente alvo da superprotecção da tia e, quando decide viver sozinha na grande cidade, a mãe – D. Laurinda, faz questão de com ela passar um tempo prolongado, controlando a sua existência a pretexto de a cuidar.

   Joana atravessa a efervescência estudantil do pré 25 de Abril, convivendo de perto com os sectores estudantis que, em plena Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, dão a cara pela luta contra o regime Salazarista (e neste ponto, o autor dá a conhecer um aspecto da história do país, se calhar nem sempre conhecido das gerações mais recentes).

   Acaba por arranjar trabalho como consultora jurídica num banco, muito por influência de uma “cunha” de seu pai, amigo próximo de um membro do Conselho de Administração de um Banco – O Dr. Gilberto. Aí, vai desenvolvendo as suas competências profissionais, mas não se revela uma apaixonada pelo Direito, apenas usufrui da posição confortável de uma estabilidade profissional que assim alcança. No banco trava conhecimento com Gustavo Lencastre, o seu mentor e mais tarde amigo mais presente.

   Vinda de uma família disfuncional, onde o pai nem sempre se mostrou presente, Joana demonstra sérias dificuldades em assumir compromissos afectivos, e vai somando relações uma atrás das outras, sem conseguir sequer encontrar-se a si mesma, sendo aliás cliente habitual de consultórios de “psis” expressão usada pela personagem, desde tenra idade, sendo também depressiva, histriónica e vivenciando de forma negativa épocas festivas associadas à vivência familiar, com especial evidência para o Natal.

   O pai de Joana – Jerónimo - ao ver a filha encaminhada e bem na vida (como é apanágio da mentalidade Portuguesa mais retrógrada), acaba por assumir um novo rumo de vida, fora do seio familiar, bastante inusitado e que vai surpreender os leitores e marcar indelevelmente a vida futura de Joana.

   Por sua vez, Gustavo Lencastre acaba por assumir no romance a qualidade de personagem quase central, e embora não lhe seja dado tanto destaque como o merecido por Joana, surge aos olhos do leitor com uma caracterização directa e indirecta também bastante complexa, juntamente com o pai, assimiu-se, desde sempre como um firme defensor dos ideais democráticos, tendo tido participação activa na luta contra o regime do Estado Novo. Acaba por se tornar num dos melhores amigos de Joana, por quem nutre um especial carinho e um sentimento que acaba por se revelar algo ambíguo e que traz ao leitor a oportunidade para reflectir sobre como o categorizar, atenta a sequência da narrativa até final. Vem de um casamento desfeito, mas trata-se de um homem íntegro, afável, bastante sociável e sempre rodeado de amigos, aos quais presta apoio perante as crises. Vive focado no trabalho, talvez possamos reconhecer-lhe uma certa faceta de workaholic, mas tempera-a com momentos de puro prazer gastronómico que vivencia aquando das suas deslocações aquele que é o seu pequeno pedaço de paraíso – a residência de férias na Foz do Arelho.

   Joana acaba por manifestar os seus desequilíbrios ao nível dos afectos, ao longo de toda a acção, muito por retorno da disfuncionalidade e instabilidade familiar que lhe coube experienciar, todavia, ao nível das amizades, é uma amiga presente, e que dá provas de lograr identificar-se com o sofrimento do próximo, empatizando, por exemplo, com Paula, uma das melhores amigas, que atravessa um momento deveras complicado ao nível familiar e busca apoio junto de Joana, encontrando essa ajuda no exacto momento em que dela necessita. A verdade é que, embora leve uma existência sofrida, e se bem que nem sempre escolha os caminhos mais correctos na sua vida, o leitor não conseguirá detestar Joana, acabando por criar empatia com a mesma e quase desejando poder fazer algo que a ajude, tal é o nível de envolvência que o autor conseguiu criar nas páginas do seu romance, e a que cremos, não será alheia (ainda que admitamos possa não ter surgido de forma consciente) a sua formação em Psicologia (aliada à formação em Direito que permite caracterizar com realismo tanto a vivência universitária na Faculdade de Direito de Lisboa, como na prática profissional da advocacia de há umas décadas a esta parte -  quando “não ocorrera a proliferação de juristas a que se assistiu nas décadas seguintes” p.p.25).

   A par da forte densidade psicológica das personagens, foi curioso ir fazendo um percurso por vários espaços sociais que acabam por se cruzar, desde a vida desafogada que, há cerca de três décadas, era permitida a quem cursava Direito, do prestigio social associado, mais noutras épocas do que na actualidade, a quem exercia Direito ou Medicina. Uma viagem ao mundo dos sem-abrigo que povoam as noites e dias desamparados no coração da Cidade de Lisboa, sem deixar de se considerar fenómenos sociais relacionados com o contexto histórico – o trauma de Guerra decorrente da participação no conflito colonial Português.

   Uma palavra de apreço também pela reflexão suscitada, já no último terço da narrativa, à questão do abuso sexual de menores, e às consequências que tal facto virá a ter na vida da própria criança abusada e no quotidiano da mesma e do progenitor inocente. Uma descrição dura, violenta mas necessária pela capacidade de alertar consciências, e uma verdadeira missão social a ser cumprida pela literatura – “Deve ser bastante violento para uma mãe saber um filho abusado…pelo pai! (…) a família pode ser o pior lugar do mundo” p.p. 117.

   O final do livro é bastante original e surpreendente, mas o que sobre o mesmo pudéssemos aqui mais acrescentar, corria o risco de se tornar num spoiler que, de todo, não pretendemos fazer.

   Quanto à linguagem, a mesma é bastante cuidada e elaborada, sem que, todavia, não se deixem de ter em conta os registos correntes de linguagem, consoante a classe social dos personagens, porém, parece-nos que, talvez possa parecer um pouco formalista algumas partes do discurso dos dois personagens juristas da narrativa – Joana e Gustavo.

   Em suma, um livro que, em apenas 126 páginas, de forma dinâmica (mas sem ser apressada), aborda temas como: as famílias disfuncionais, os dramas psicológicos que podem afectar os seres humanos muito por influência do que lhes coube viver na infância e adolescência, inclusive com reflexos na forma como vivenciam os afectos e a sexualidade (andará por aqui pelas entrelinhas uma certa visão Freudiana da formação da personalidade?); a história contemporânea do nosso país, nos seus aspectos menos positivos e mais traumáticos.

   É uma obra realista, embora ficcional, a escrita é clara, envolvente e oscila entre os momentos de pura ternura, passando para a livre experiencia dos instintos mais básicos do ser humano e para uma crueza de, por vezes, a vida acaba por se ver inadvertidamente pautada. Trata-se de um romance que pode ser lido por ambos os sexos, mas que não podia estar mais longe da qualificação de light, e torna-se bastante original e fácil de ler, mas deixa-nos a pensar ainda algum tempo depois de finda a sua leitura.

 
   Uma obra madura, para ser lida também com maturidade e não por leitores que sejam mais susceptíveis. Recomendamos, apenas com a reserva do público alvo!

  

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